26 de fev. de 2012

Pra Cruzar o Céu de Madrugada.



0

Houve um tempo
(há muito tempo!)
Em que ser noite bastou.

Houve um tempo
(mas foi há tanto tempo...!)
Que o próprio tempo levou.

Mas eu não sou tempo
Sou um quase-poeta
(ou é o que tento...)
E tenho alma (inquieta!)
Demais para esquecer
Palavras assim ao relento.

Assim,
Comecemos pelo começo.



1


Era sempre da mesma maneira: antes que apagassem as luzes, corria a fechar os olhos. E quando fitava (sempre quieta!) o avesso das próprias pálpebras, convencia a si mesma de que a escuridão que tinha dentro de si era muito melhor do que a escuridão que o mundo a oferecia. Era mais doce, mais sua. Oh, era tão sua...! Escondia-se no mais profundo de seu âmago, detrás de uma camada demasiada grande de quietude cinza, mas estava lá, onde só os olhos fechados alcançavam. Estava lá, e era muito mais escura do
que jamais ousou admitir. Muito mais do que gostaria. 



2

Feito pó.
De grão em grão.
De nó em nó.
Crescendo, só
Na contramão.

Feito eu,
O abrir dos olhos
O fechar d’alma
Feito eu, quando oro.
Voz calma, joelho no chão.
E peço ao papai do céu
Um novo coração.

3

Chovia forte. O frio recusava-se a partir. Todos já dormiam, debaixo de cobertas grossas, e ainda assim, sentindo o gelar dos ossos. Mas ela não abriu os olhos. 

Dançava no pátio descoberto, ao som das batidas do próprio coração. Sorria. Sorria tanto...! Rodopiava com os pequenos braços abertos, feito bailarina torta. E o frio não ousava se aproximar. Tinha medo, veja só! Pois ele sabia que os olhos estavam fechados, que a escuridão o afugentaria ao mais efêmero toque. Então ele ficava ali, à espreita. Só olhando. Nem a chuva a molhava como deveria. Foi quando soube: tinha a noite dentro de si. 


4

Mas foi crescendo... Crescendo... Até não caber mais. Abriu as asas feito pássaro escuro e alçou voo d’alma. (Per)correu dos pés às pontas dos dedos das mãos. E foi ali que fez moradia.

Descobriu como cantar. Batia as asas pra sacudir as palavras pra fora, e rabiscava de pena carmim o papel, consumindo a si mesmo. Era tudo tão embaralhado, tudo tão ensimesmado! Feito um sopro. Mas a escuridão era chama. E o sopro tinha medo. Então fez encaixar tudo, como brinquedo de criança.


5

E foi quebrando
De linha em linha
E deixando queimar
A cada novo iniciar.
Sem sopro para apagar.
Sem sopro para apagar!

E foi deixando-se pra trás
Feito cinza.
Feito pó.
Feito pó.
Feito...
Pó.


6

Pés no chão.

Vazio.


7

Nunca estivera menos só.

Já não podia fechar os olhos, pois o que via não era a escuridão dos avessos das pálpebras, era
apenas um vazio morto.

Morte de escuridão viva.

Morte dos sonhos, quiçá.

Que se consome no fogo que queima na ponta dos dedos





E então descobriu as reticências.



8
...



0


Houve um tempo
(há muito tempo!)
Em que ser noite bastou.

Houve um tempo
(mas foi há tanto tempo...!)
Que o próprio tempo levou.


∞ 

Cada fim de um algo é o início de um algo todo novo. Cada partir é a certeza de um regressar do
outro lado. Cada morrer é um renascer. Cada chama que se apaga é uma escuridão que se acende.

Cada alçar voo é um novo toque dos pés no chão.


E nunca acaba.
(até que eu acabe)




...

Sacrário.

Ela tropeçou na própria fé.

Tropeçou e caiu de joelhos e mãos atadas, como quem pranteia uma prece esganiçada. 

E quando ela se levantou já não era mais a mesma.

Deixou a inocência no chão ungido onde tombou em genuflexão, sob uma benção profana e uma cruz tatuada ao peito, tal qual promessa barata de salvação. De um céu qualquer. Desanuviado e anoitecido? Seu próprio céu.

Seu pedido atendido e o precoce anoitecer eterno d’alma, deixando pra trás os vestidos florais e os sorrisos pueris. Seu pai, seu filho, e seu espírito profano. A oração ao Deus que enxerga defronte ao espelho, que reflete nada além da podridão da luz dos olhos. A Luz. Oh, mas há tanto túnel para se percorrer ainda. 

A Luz é enegrecida, tal qual sua própria alma. Esqueceu-se de ser luz, escureceu-se pra ser treva. Como uma flor seca que renega seu perfume, e troca delicadeza por podridão.

Não há como negar; ela cria. E cria de verdade. Intensa, veemente, e insanamente.

Mas, oh céus, ela tropeçou na própria fé.

Sonetinho de Uma Só Rima. (Duas, talvez).

Mordo-me inteiro
(sem receio!)
De joelhos
Pro sangue (es)correr


Olho no espelho
(o sorriso sorrateiro!)
E despenteio
Como que pra enlouquecer


Ao léu
(sou eu que o permeio?)
Retroceder


Sou vermelho
(a cor do seu beijo!)
Que deixou de me pertencer.

Para Resbalar.

Quero que seja imperfeito
Ao tocar seu violão.
Dedilhado malfeito...
Ou desafinação.

Quero, por estranho que pareça,
Um trôpego inclinar de cabeça,
Quiçá, um sorriso que aconteça,
Para que sussurre na contramão.

E, se assim desejar,
Que desistamos de ensaiar!
E caminhemos de volta.

E, se a plateia nos vaiar
Serei eu o primeiro a gritar:
“Pois a mim não importa!”

Mas se insistir, que continue errando!
E permita meus olhares enviesados,
Com aquele trôpego sorriso nos lábios,
Antes que eu cubra o piano.

E se notar meu descompasso,
Que sorria (como eu sempre faço!)...
Que rascunhe um abraço,
Ou então nem ouse me olhar!

E, se for embora,
Pois que vá agora!
E bata a porta ao passar.

Ou então, que fique,
Mas, como eu disse,
Não pare de errar.

Canção de Ícaro.


Ainda que outra estrada não houvesse,
Só pra desviar...
Ainda que, no bolso, sonhos coubessem
A transbordar pra outro lugar...
E se o vento que já não sopra ao leste
Recomeçasse a cantarolar...
Perder-se-ia de qualquer maneira.

Ainda que o rosto imberbe fosse pueril,
E sol que nasce nesta terra
Só nascesse sobre o rio.
Ainda que navegasse
Apenas no teu mar bravio
Perder-se-ia de qualquer maneira.

E se as espirais espirrassem pra outro lado
E se a tinta que agora escorre,
Pintasse um novo retrato
Ainda que, de fato,
Não desse ouvidos ao olvidado
Perder-se-ia de qualquer maneira.

Pois é de tijolos amarelos esta estrada,
E aqueles sonhos irrequietos
Escureceram numa aurora nublada.
Mas ainda que toda palavra tua fosse apagada.
Perder-se-ia de qualquer maneira.

(quero um sol que derreta minhas asas de cera!)

Quando Chove Aqui.

Começa de mansinho, mal dá pra perceber. O céu vai escurecendo, a luz vai se esvaindo, e quando dou por mim estou com o rosto colado no vidro frio da janela, hipnotizado. Inventando minhas próprias palavras entre um trovão e outro, ou desenhando inconsistências no embaçado frágil provocado pela minha respiração. Minha respiração. Isso deve significar que ainda estou vivo, certo?


Eventualmente, há também uma xícara de café, ou um copo de chocolate quente, conforme peça a situação. Mas quase sempre o líquido esfria. Costumo me esquecer tão facilmente dele... Talvez sejam meus lábios que prefiram se encostar-se à janela gélida em vez do quente da bebida.

Pergunto-me como os passarinhos ainda cantam, quando chove. Pergunto-me se eles cantam justamente porque chove. Talvez eles sejam tão dependentes da chuva quanto eu sou. Talvez eles também parem apenas para ouvir seus gracejos, suas melodias de entrelinhas. Costumam acusar-me de me ensimesmar, quando me ponho à janela. Mas sei que não é isso o que ocorre. Ou talvez seja, considerando o fato que, de tanto observar, sinto-me parte da chuva. Ensimesmado nela, como se ela fosse meu mundo, e meu mundo fosse dela. Como talvez seja de fato.

Ora, como deixo-me impressionar? Afinal, é só água caindo.

Só.

Pois é.

Quando chove aqui eu lembro de você.

Soneto de Menino Pobre.

Sou feito de pé no chão
Minha imundície na pele está
Sou limpo, senhor, no coração
Chegue mais perto, se quiser comprovar.

Perdi-me nesta estrada torta
(alguns a chamam de vida)
Ao bater de porta em porta
E cantarolar minha velha cantiga

Mas sou assim, tão só
Acho que esqueci de ser gente
De tanto desatar meus nós

Vivo nos postes apagados desta cidade
Sou menino pobre, senhor
Não quero sua esmola, quero minha liberdade

Samson.



Disseram-me que nosso amor estava em teus cabelos.
Disseram, mas não lembro se acreditei.
Disseram-me que eu mesmo o trancei,
E entrelacei... Teu amor no meu.

Disseram-me, mas não lembro se acreditei,
Que crescera assim, como haveria de ser.
Que o cobrimos com chapéus e lençóis,
Que o escondemos, e o guardamos só para nós.

Disseram-me, mas eu não acreditei.
E enquanto dormias, eu mesmo o cortei.
Disseram-me que nosso amor acabaria.
Ora! Se me disseram! Mas eu não acreditei.

Disseram-me que nosso amor estava em teus cabelos.
Mas era mentira, como sempre desconfiei.
Teu cabelo é frio, e em demasia atroz.
Disseram que nosso amor estava em teus cabelos...
Mas ele estava em nós.

Sobre Calçadas e Calçados.


Eu a vi assim
Como haveria de ser
O sorriso insincero sob carmim
A inocência a desvanecer

A silhueta jovem
Quase que irresistível.
Enquanto atende a clientela
– que não lhe falta!
Mas mantém a alegria intacta,
Oh, não soa crível.

E quando a noite termina
Ela desce do salto alto
E salta no ato
Pra sua vida de menina.

Com seu surrado all star
Outrora preto – já desbotado pelo tempo
E sua rodada saia de chita,
Escondendo o que, na noite,
A faz bonita.

E assim haveria de ser?
Morrer menina
Ou precoce mulher (sobre)viver?

Mas trabalha com tanto empenho,
Quanto, de caneta azul,
Seu tênis ela tinge;
Quanto trança seus cabelos;
Ou, defronte ao espelho,
Ensaia o prazer que finge.

Estranho é ser feliz
Com a vida que tem.
Estranho é ser tão nova,
E ser sozinha, sem ninguém.

Estranho é vender teu corpo,
Para alimentar uma sobrevida.
Estranho é ainda brincar de bonecas,
E não ter amigas.

Estranho é me desinteressar
Pelo teu corpo nu.
Estranho é gostar tanto
De seu all star azul.

Cálice.


Vinde Vós
Que sois o Santo
E desatai os nós.
Os nós das amarras aos pulsos
Os nós de ideias arcaicas
De peitos e corações avulsos.

x

Desatai a dor que me destrata
Que corrói e maltrata.
A dor do silêncio,
Do que foi dito ao pau-de-arara
Do grito emudecido, morto
Onde mesmo se iniciara.

x

Da sobrevida de um velho poeta
Que canta atrocidades
Nas entrelinhas de falsos amores
Que dá disfarce aos seus protestos
Que se cala diante dos horrores
Da democracia de um governo desonesto

x

Vós, que sois o Pai
Afastai de mim este Cálice.
Afastai de mim este Cale-se.
De vinho tinto, de sangue.

x

Escutai, Oh Pai,
Esta última prece desesperada
Retirai o silêncio
Que traspassa minha garganta
Como uma santa desalmada,
Entre punhos e joelhos¹
De onde brota o sangue
Quer borbulha dentro de minh’alma.

x

Vinde, Oh Santo
Para que caleis minha voz.
Pois este velho poeta ainda grita
E ainda sangra a verdade recôndita
Das feridas d’uma mão atroz.

x

Vós, que sois o Pai
Afastai de mim
Esta vontade desumana de gritar;
De mudar o imutável,
E a verdade absoluta contestar.

x

Dai-me força para desistir,
Coragem de não continuar,
De o silêncio engolir,
Sorrir, e continuar a cantar.

x

Afastai de mim este Cale-se, Pai,
Que me impede de gritar.
Afastai o silêncio de mim,
Que se põe ao meu ego corroer,
Afastai este Cálice de mim,
Ou me deixai morrer...
Enfim.

Joelhos Ralados.

Pequenino garoto de ferro,
Não, não se engane,
É muito mais garoto de sangue,
E coração enferrujado.
É inocência de joelhos ralados,
Mas não se zangue,
Pois todo mundo rala os joelhos
De vez em quando.

Quem nunca caiu,
É porque nunca roubou amoras do pé.
Quem nunca chorou?
Quem nunca desabou?
Quem nunca perdeu a fé?

Deixe-se enferrujar, pequeno.
Chore! Chore! Chore!
Porque quem nunca chora 
Tem a alma seca.
Deixe que se perca,
Deixe que vá embora.

Sua força não é de olhos secos,
É de peito aberto,
É de sorriso certo,
Sua força é de ter medo.

Sua força é um apertado abraço,
É a persistência do nó sob o laço,
É o carinho que eu mesmo faço,
No seu peito metálico.

Não se importe, 
Nem fique assim, calado,
Cante a dor que te aflige.
Faça soar as cicatrizes,
Do seu joelho ralado.

Mas não se zangue,
Como sei que faz há meses
Porque todo mundo rala os joelhos...
Às vezes.

Rimas Mortas.

Fui-me então.
O fechar dos olhos...!
O envolver duma escuridão...!

Fui-me então.
Desta minha vida parti.
E sequer lembro se existi.

Mas trouxe a caneta comigo.
(E ela ainda é tão viva...!)
Ao pulsar em meu bolso, seu abrigo
Clama por outra saída.

Mas sabes bem pequena,
Sempre fostes meu coração.
Lembra-te de como era tenra
Ao deslizar nos dedos de minha mão?

Eras tão bela no rodopiar vertiginoso
Que se fixava no papel, feito eterna espiral
Mas agora este poeta é morto,
E fazer verso agora é vital.

Pois já não me lembro
Do mundo que deixei
Lembro, apenas, das rimas que fiz
Dos amores que versei.

E se agora eu o refaço
É porque não ouso esquecer
Não sei dar nó sem laço
Tampouco sei se sei morrer.

Escrevo sussurros cadenciados
Pois sou feito de tinta azul
Preciso do meu silêncio gritado!
Vivo nas entrelinhas dum poema cru.

Escrevo também seus sorrisos
Os triunfos que deixei há muito,
As alegrias efêmeras e intrínsecas
No perfume doce dos teus olhos úmidos.

Recriei, em tinta de caneta
O tontear do prazer.
Refiz estrelas e planetas
Só pra vê-los quando anoitecer.

Mas sou menino-cinza:
Sem noite não sei existir.
Não sei morrer sem rima,
Mas não sei rimar sem deixar cair.

Fiz meu mundo em poesia,
Reticências e vírgulas
Mas fracassei! Meu mundo não me pertencia
Pois sou nu: despi-me da vida.

Mas sou poeta morto:
Fracasso de sorriso enviesado.
Meu mundo agora é outro;
Que estes versos padeçam comigo:
Enterrados.

Brighid

Desce a rua a poetisa
Com os olhos pintados,
Que sorriem e hipnotizam.
Sobre os ombros, o violino afinado
Que destoa, em compasso ritmado,
Suas quentes poesias.
E incendeiam, sem reduzir a cinzas
Tuas ideias, as mais desconexas,
Ganham luz própria, ganham vida,
Desconectam-se de promessas.

Desce a rua também
O tinido mavioso
Vem das forjas da ferreira,
Que afia o machado
Com, nos lábios, seu sorriso jocoso.
Destemida, posta-se em prontidão
Incendiando as ameaças
Poetisa de outrora,
Ataca com o fogo do coração.
E com suas quentes palavras.

De braços abertos,
A alquimista vem descendo a rua
Com o fogo em uma mão, e na outra a cura.
Transmutando tudo o que toca,
Com cálices de antídotos borbulhantes,
E abraços que acalentam.
Tem a solução nos lábios,
Sobre as chagas, põe-se a beijar
E o pôr-do-sol nos olhos
Que lhe adormece,
Com uma canção de ninar.

E o fogo, o que transforma,
Vai deslizando pelas mãos
Delicadas, robustas e acalentadoras.
Quentes, agora. Escorre pelo chão.
Das mentes incendiadas da poetisa,
Das forjas brutas da ferreira
E dos braços afáveis da alquimista
Desce a rua, Brighid,
Moldando as chamas à sua própria guisa.

De Seu Valentim.


Ei, Senhor Curiosidade, poderia me ouvir, por favor? Sou eu, aqui!

Não posso te ver, não sei sequer se outros podem, não obstante, minhas razões são distintas. Como o senhor bem sabe, não tenho olhos. Se os tenho, são imprestáveis. Trancada estou em um infindável quarto escuro, tão vazio quanto se pode ser. Oh sim, estou presa no quarto escuro que sou, e na frieza dos cubos de gelo das pontas de meus dedos, quando vêm deslizar sobre minha pele buscando, entre a poeira pueril, partes ínfimas de uma sensualidade que, convenhamos, sequer existe.

Oh sim, basta olhar para mim para constatar. Eu, que jamais o fiz, sei bem. Sou apenas um pedaço pequenino de nada. Então, venho por meio destas palavras ocas, fazer-lhe um pedido. Não, não um pedido, um imploramento. Oh, Senhor Curiosidade, eu lhe imploro: dê-me algo de interessante. Algo de curioso. Algo que faça as pessoas, de fato, olharem para mim. Algo que as faça sorrir, que as intrigue.

Tudo bem, tudo bem, sei que não posso te enganar, então vou contar-lhe a situação toda. Bem, é tudo sobre Valentim. Com mais frequência do que eu desejaria, meu pai ordena-me que não me aproxime dele. Ele está preso nas masmorras. Nas celas outrora escuras e fétidas que, de alguma forma, agora têm cheiro de rosas. Tenho ouvido a estória da boca dos camponeses, e sei porque ele está lá. Ele acredita no amor. Oh, Senhor Curiosidade, isto não é curioso? Valentim acredita no amor, e morrerá por isso.

Nosso Rei (vida longa a ele!) insiste que amar é um crime. Então diga-me, Senhor Curiosidade, por que eu não estou jogada ao léu de uma das celas das masmorras? Sim, eu amo. Amo com todas as forças vãs de meu pequenino corpo coberto de nada. Sei que o amo. Amo Valentim, pois ele é o amor, e – veja que curioso – eu amo o amor!

Oh, Senhor Curiosidade, agora eu ouço alguém me chamar. Mas não vá embora. Sei que o Senhor tem diversos assassinatos felinos e felpudos a realizar, mas isto é de extrema importância. Não me demoro. Não vá embora, Senhor, por favor.

...

Senhor Curiosidade? Ainda está aqui? Oh, eu menti mais cedo para o senhor. Menti ao dizer que meus olhos são imprestáveis. Na realidade, eles servem de abrigo às cristalinas lágrimas azuis que agora percorrem minha face. E o fazem devido às palavras escuras que acabei de ouvir: Valentim irá para a guilhotina ao amanhecer.

Diga-me, Senhor, são minhas lágrimas realmente azuis? Ou elas são negras, como a minha alma? Não que eu saiba o que realmente seja azul, ou o negror. Não vejo as cores. Sinto-as, todavia. Cada qual em sua sintonia e frequência. Assim como sinto Valentim ao passar em frente à sua cela. Bem como ouço seus sussurros, ou sinto seu perfume de rosas.

Pode ser que eu não ter olhos seja coisa do destino. Assim como o coração de nosso Rei ser tão frio. O destino é curioso, e o Senhor sabe muito bem disso, não é? É de partir o coração que Valentim esteja agora em sua cela, esperando lentamente sua morte. Mas, de outra maneira, eu nunca o conheceria. E ainda assim, se pudesse vê-lo, nunca o notaria. Diga-me, Senhor, isto tudo não é curioso? Oh, não imagino como poderia viver sem conhecer Valentim, sem conhecer o amor.

Pergunto-me onde ele está agora. Não seja bobo! Sei que ele está em sua cela. Digo, onde estão seus pensamentos? Será que ele pensa em mim? Será que ele realmente sabe quem sou? Será... que... ele... me... ... ...ama?

Que seja, não faz diferença agora, faz? Tudo acaba amanhã. Oh, Senhor Curiosidade, poderia o Senhor levar embora consigo toda essa tristeza que esfarela meu coração? Por favor?

Tudo bem, sei que o Senhor é atarefado. Mas tenho um último pedido a fazer. Ontem à noite, enquanto passava pela cela de Valentim, ele me entregou esta carta. O Senhor poderia lê-la para mim? Oh, obrigado Senhor Curiosidade.


E no quarto escuro que era, a pequenina ouviu o soar das palavras:
“ Eu te amo.
De seu Valentim.”

E, de repente, ela já não era mais um pedacinho de nada.



Sustenido.

Sabe, não me agrada a Escala de Lá. Nunca me agradou. Prefiro arriscar-me nas inconstâncias da Escala de Aqui, nas intemperanças que soam aos acordes desafinados que destoam sob meus dedos suados. Prefiro compor aqui, e em Aqui. A oitava nota que eu mesmo tratei de inventar, e eu mesmo tratei de construir com o som das batidas de seu coração. A música dos abraços acalentadores e – paradoxalmente – vorazes de átrios e ventrículos, e os meios-tons extraídos de seu olhar. Os meios-tombos que me causa tua boca, que me deixa meio-louco, meio-torpe, meio-morto. Acompanhados sempre dos bemóis sussurrados ao pé de meu ouvido, na clave de Teu Corpo (invenção minha também, admito) onde o Ritornelo sou eu lhe implorando para ficar.

Nesta minha clave - que é tão sua, muito mais do que minha - refazem-se as mínimas, que há muito não eram usadas. Mas há muito não se ama como eu amo, então acho que posso me conceder esta pequena liberdade. E estas notas tão pequeninas duram, obrigatoriamente, para sempre. Ainda que não durem de fato, continuam soando, e ecoando assim, mansinhas, dentro de nossas cabeças.

E a pobre nota de Aqui faz-se muda sem a clave de Teu Corpo em mim. Pobrezinha, perdida no sustenido estreito e irreal entre a compaixão e si própria. Pisoteada pelas fusas e colcheias atrozes das longínquas terras de Sol e Fá.

Portanto, se insistir em ir, leve Aqui consigo. Ela ainda assim ficará perdida fora da partitura que eram os nossos corpos juntos, da composição outrora infinita que era o nosso amor, das cinco linhas que enlaçavam nossos beijos, que me amarravam em você. Mas eu continuarei na Escala de Lá, lhe esperando voltar. Aqui.

Leve Aqui e escute seu sussurro, seu choro. A melodia de seu pranto, ritmada e copiosa. Talvez ela consiga te trazer de volta pra mim, façanha que nem meus lábios quentes, nem meus dedos descompassados e demasiado ignóbeis sobre o piano conseguiram. Talvez ela toque seu coração, talvez ela tome conta dele. Talvez nem chore. Talvez lhe ofereça os ombros para que consuma os seus prantos, talvez... Talvez...

Talvez não haja Ritornelo. Talvez a platéia não peça bis. Sequer aplauda. Talvez este seja o prelúdio de meu fim. Talvez Aqui não lhe resgate de Lá.

Mas talvez ela te suba meio-tom. Talvez você volte para Dó, talvez você volte por dó. Talvez você retorne para Mi(m), e então eu poderei tocar esta canção, várias e várias vezes. Talvez, assim como eu aprendi desde cedo a tocar este velho piano, você aprenda a me amar.


25 de fev. de 2012

Summer Rain.




Era uma vez
Um grãozinho de areia.
Vivia em uma praia qualquer,
O lugar pouco importa, afinal.
Vivia sozinho, abandonado,
Como um marginal.
Não tinha ninguém,
E ninguém o tinha.
Vivia sua triste vida sozinha,
Perdido em devaneios
Perdido em veraneios
Perdido em derradeiros
(sim, derradeiros)
Ponteiros.

Os do relógio, sabe?
Tão teimosos
Quanto se pode ser.
Insistiam em continuar
Sua dança agonizante
Que faz o tempo passar.
Insistiam, ainda que o grãozinho
Os implorasse para parar.
Isto porque o tempo traz o verão
E o verão traz pessoas.
Oh, como ele odiava as pessoas!
Tão malcriados, o pisoteavam
Esmagavam e se orgulhavam.
Riam-se, cheios de si,
Enquanto o grãozinho, tão pequenino
Já não sabia se estava aqui ou ali.

Mas, um dia desses,
O anuviado céu escureceu.
Trovões ecoaram,
As pessoas partiram
O calor desvaneceu.
E quando a primeira gota de chuva caiu
O grãozinho correu,
Mas do destino não se corre,
Oh pequenino.
Já estava escrito,
Ele estava fadado a se molhar.
E a quando a gotinha de chuva o atingiu,
Ele descobriu,
Também estava fadado a se apaixonar.

Na chuva eles riram,
Na chuva se perderam
Em devaneios
Em veraneios
E nos malditos, e derradeiros
Ponteiros.
Que o tempo levou.

“Não se vá”
O grãozinho implorou.
“Fique aqui comigo, porque eu te amo,
E também estou certo de seu amor.”
“Era eu uma lágrima”
disse ela
“Que no calor evaporou,
E chuva se tornou.”
“Portanto, não sei amar
Só sei sofrer;
Só sei chover;
Só sei chorar.”
“Não é preciso saber para amar.
Olhe para nós:
Tão diferentes e tão iguais.
Não há regras.
Apenas sinta, se permita,
E vence-se até o frio mais atroz.”

A gotinha enfim entendeu.
O que era amar.
Mas o tempo passou,
E a levou pro mar
Onde tornou a evaporar.
Mas ela, do grãozinho não se esqueceu.
Apenas guardou-o em seu aquoso coração.
“Eu volto”
Disse ela.
“Volto no próximo verão
Para tudo recomeçar
Na próxima chuva...
Só pra te buscar”


Sofia, a garota que não sabia sentir.


Tinha oito anos e cabelos tão encaracolados quanto os pensamentos: cachos espiralados que davam nós quando ventava muito e, de vez em quando, se esticavam até a ponta dos dedos; os cílios eram longos demais para os olhos pequenos, tão pequenos que desapareciam na brancura imaculada e pueril que era a face de Sofia. Não gostava de usar sapatos e se equilibrava descalça pelo meio-fio todas as manhãs, abrindo os braços em desengonço, como se pudesse abraçar o sol que estava para nascer. Assoviava óperas para os passarinhos e ria sozinha quando desafinava (e ela sempre desafinava!). Nunca comia chocolate, gostava mesmo era de brócolis! Quando não tinha ninguém olhando, construía bosques de brócolis, como se estes fossem árvores pequeninas, só para devorá-los depois. Não dava a mão para ninguém quando precisava atravessar as ruas e só abraçava seus livros. Sorria apenas quando tinha de escovar os dentes e fugia de seu quarto na calada da noite para sentar no jardim e conversar com as estrelas. Sofia era feliz.

Seu único mal era pensar demais. A cada novo segundo que tiquetaqueava no relógio da cozinha, um novo pensamento em espiral surgia em sua cabeça, ensimesmado, enrolado, confuso... E frio. Mas tão frio...! Sofia machucava as pontas dos dedos quando resolvia esticá-los e quando lhe perguntavam o que havia acontecido, ela apenas passava as mãozinhas pelos cabelos, como se fosse óbvia a resposta e não valesse o trabalho de tecê-la à língua. Quando achava que valia a pena, desenrolava tanto as espirais que já não as cabiam mais nas palmas das mãos. Corria logo para o quarto para buscar seu lápis carmim, e riscava o papel com tanto desespero que surgiam bolhas nas mãos. As ideias chegavam a se aquecer por uns segundos, mas logo que as palavras adormeciam, a frieza voltava. E, se alguém tocasse naquele pedaço de papel, também machucaria a ponta dos dedos...

E Sofia gritaria. Um grito que o silêncio trataria de engolir.

Pois aquele papel rabiscado de carmim, Sofia chamava de alma.