2 de jul. de 2014

Pó-de-estrelas



Quando era pequeno, meu pai dissera-me que todos nós, tudo que existe, todas as curvas e cantos eram feitos do pó das estrelas. Que, antes de existir coisa alguma, estávamos todos apertados em um lugarzinho só e existiu uma explosão que construiu tudo o que há. Eu, contrariado, pensava comigo mesmo que coisa alguma que começasse com uma explosão poderia ser boa coisa. Afinal, imagina tudo que você conhece indo pelos ares em um turbilhão de luzes e calores e, num piscar de olhos em câmera lenta, tudo sendo novo. Eu sei lá, não parecia coisa boa. Mas eu não dizia isso ao meu pai. Ele contava suas histórias com tanta paixão que eu ficava receoso de não demonstrar animação.


Uns anos mais tarde, conheci na escola uma menina que dizia exatamente as mesmas coisas: nós somos pó de estrelas. Blargh. E ela dizia, também, que quando nós morrêssemos, voltaríamos às estrelas, porque lá que é a nossa casa de verdade. Mas eu discordava. Batia o pé e dizia pra ela que minha casa de verdade era na rua do mercadinho. E que, aliás, ela poderia aparecer lá para tomar um chá qualquer hora dessas. Mas ela nunca aparecia.


E essa coisa do pó das estrelas me perseguiu por toda a vida. Sempre que eu olhava pro céu e via aquele bando de luzinhas espalhadas pela imensidão anil, como se alguém tivesse batido as costas da mão no pote de lantejoulas, não sentia nada além de vertigem. Mas às vezes, dando o braço a torcer, eu até devaneava sobre as estrelas pensarem que elas, na verdade, serem feitas de pó-de-gente. E sobre em alguma dessas estrelas viver também um menininho dos cabelos despenteados que torcia o nariz quando ouvia essa história boba.


Eu encontrei a menina-do-pó-de-estrelas em mais duas outras ocasiões ao longo da vida.


Um: quando eu voltava do cursinho, espremido entre os outros passageiros do ônibus, eu a vi pela janela. Estava sentada no meio fio com um outro menino. Tinha dezesseis anos, calculei, já que era um ano mais nova que eu. Eu demorei um tempo até lembrar de onde conhecia aquele rosto, mas foi só ver ela apontar pro céu e cochichar alguma coisa pro menino que eu lembrei. Mas logo o ônibus voltou a andar.


Dois: quando eu bati no carro dela. Lembro que desci do carro pensando no pior adjetivo que eu conhecia (a título de curiosidade, era “remelenta”), mas estanquei quando vi quem estava dirigindo. Logo disse que eu cobriria todos os prejuízos – ainda me pergunto por que raios fui inventar de dizer isso – e a relembrei: “Poxa, sou eu. Estudamos juntos, lembra?”. Mas, apesar de ela ter fingindo um “aaah” de surpresa, como se tivesse lembrado de súbito, não acho que ela tenha lembrado. E eu fiquei me sentindo um palhaço, imaginando que aquilo teria soado a ela como uma cantada nojenta ou algo do tipo. E pra piorar, quando ela estava indo embora, eu a convidei para um chá lá na minha casa. “Ainda fica na rua do mercadinho, viu?!”. Ridículo.


Desde então eu tomo meu chá sozinho. Às vezes sentado na frente da televisão ou lendo algum livro. Mas às vezes eu levo minha xícara para o quintal, sentando no chão e olhando para o céu. Às vezes é só pelo vento que aparece esporadicamente para despentear os meus cabelos. Mas às vezes é para quase-acreditar naquela história do pó-das-estrelas: são nessas noites que eu penso que, se nós estivemos mesmo todos apertados em um lugarzinho só antes da grande explosão, talvez eu e ela já tenhamos tomado umas xícaras de chá juntos. E, só talvez, ela tenha vivido uma vida inteira apertada ao meu lado.




escrito para um Campeonato de Textos remoto.

Nesga


Estive preso e em pedaços
fui morto, fui pouco
tornei-me torto
estive cansado.

Fiquei de braços dados
e olhos de decadência:
enroscado nos seus tratos,
emprestando sua presença

Caí sentado
num vão imaginado,
um pedaço de realidade.

Bebi-a aos bocados
e foi preciso cortar-me
para passar pelas grades.