31 de dez. de 2018

jaula

prendi um momento numa gaiola de píxeis:
agora ele sorri pra quem passa
pra quem deixa like
ele sorri sem graça
com graça
como convir
ele sorri

ele tira o chapéu, educado
cumprimenta, dá bom dia
ele deixa ir o apressado
e ao atento ele troca
um afago ele troca
uns olhares de cortesia

mas é só apagar as luzes
que vou limpar sua gaiola,
e copioso ele chora
quero ir embora ele chora
e embora não haja embora
ele diz não demora
e chora
ele chora eu quero ir

agora o momento faz greve de fome
e é sempre agora

no transluzir da aurora
o momento vai virando memória
e num museu de fósseis
ele ganha etiqueta
num museu de fósseis
ele perde o nome

o momento virou cadáver.

e a tatuagem no peito
do lema
fica pra mais tarde:
existe um abismo apenas
uma distância infinita e serena
entre o verdadeiro píxel,
a realidade pequena
e a derradeira carne

31 de mai. de 2018

permanente


entrai
nos calabouços
recônditos
de vossa própria existência

entrai no escuro da alma
sem pretensão de clareá-la
bebei do amargo
ao áspero apresentai o afago
apertai vossa própria mão
abraçai vosso próprio corpo
curai vossos próprios machucados

escrevei sobre vós na segunda pessoa
só porque soa lindo pra caralho

errai
e perdoai
vossos próprios pecados

entrai
nos calabouços
recônditos
de vossa própria existência

entrai
conhecei
repeti
e sejais
vós

pois vós sois
permanente
impermanência.


26 de fev. de 2018

existe um poema não escrito

no fundo da minha gaveta de meias
existe um poema não escrito

acomodou-se no escuro intocável
agora rosna e mostra
os dentes pontiagudos
sempre que ansioso e aflito
o tento escrever

há um poema turvo
que nunca tomou forma
mas que chora copioso
anuviado
as tintas as dores os amores
todos muitíssimo bem guardados

há um poema bravo
com muitos dedos para apontar

há um poema calmo
qual deriva em alto-mar

há um poema alto
crescido e longilíneo
que se recusa a ser domado
poema que ao parto
abandonado
fez-se farto
em se fazer sozinho

dele escorrem rimas infantis
velhas fotografias de família
filmes, livros, músicas

dele caem cacos de mim
pétalas de outrora
e pegadas de uma eterna busca

dele grita o SILÊNCIO
e o talvez

dele escorregam alguns sempres
e transborda a pequenez

existe um poema não escrito
no fundo da minha gaveta de meias
existe um poema bem bonito
que vem escrevendo a si mesmo
desde que o deixei para depois

ele não espera
um nome
não espera um verso
nem uma rima ele implora

ele não colabora
não é manso
esse poema nunca que vai embora

ele fica ali
com os olhinhos medrosos
desconfiados
sempre à espreita
disposto a atacar

quando na violência dos dias
vou esquecendo de ser poesia
o poema surge aos brados
por cortesia
para me lembrar.